quinta-feira, 12 de abril de 2007

Abanão


Crónica do hospital

Para a Rita e para o Henrique Bicha Castelo, que mereciam mais que este texto, com o amor e a gratidão do António





Não quero aqui ninguém. Quero ficar sozinho a medir isto, a minha doença, a minha mortali­dade, o meu espanto. Por mais que repetisse

- Um dia destes

não acreditava que o dia destes che­gasse. E agora, Março de 2007, veio com a brutalidade de uma explosão no peito. Não imaginava que fosse assim, tão doloroso e, ao mesmo tempo, tão pouco digno como a velhice e a decadência. Tão reles. O olhar de pena dos outros, palavras de esperança em que não têm fé, dúzias de histórias de criaturas que passaram por isso que tu tens agora e es­tão óptimas. Recuperando aos poucos da anestesia vou dando-me conta de que um bicho horrível em mim, ratando, ratando.

Dois sentimentos opostos

- Vou lutar, não vou lutar

e o primeiro fala antes do outro

- Chamem o Henrique

um grande cirurgião, um colega de curso, um amigo, uma das muito poucas pessoas a quem entregaria sem hesita­ções o meu corpo. Este texto talvez váum pouco desconexo, desculpem, ainda estou fraco, a cabeça tem lacunas, falta­- me vocabulário, há mais de nove dias que não pegava numa caneta e é difícil reaprender a andar. O meu medo que o Henrique não pudesse. Mas disse a quem lhe fala

- Eu vou já lá abaixo

e enquanto me faziam uma TAC vi-o atrás do vidro, sério, a apertar a boca. Depois veio ter comigo

- Opero-te amanhã de manhã

e queria que soubesses, Henrique, a esperança que as tuas palavras me trou­xeram. Não só esperança: o que não sei dizer. Ou antes sei mas tenho vergonha. Contento-me em pensar que tu sabes também. Sei que sabes. Basta a maneira de protestares, de mão contrariada

- Não me agradeças, não me agradeças basta o teu afecto pragmático diante das minhas perguntas

- Uma coisa de cada vez

o modo como me disseste.

- Eu trato-te

como diante da minha aflição, aflição sim senhor, deixemo-nos de tretas

- E se houver metástases no fígado?

- Eu tiro-as

e eu tentando pôr-me no teu lugar pensando como deve ser penoso operar um amigo. Um amigo desde os dezoito anos. Em como deve ser penoso, em como deve ter sido penoso para o Henrique trabalhar com uma carga afectiva em cima dele, naquelas circunstâncias. Mexeu-me todo: tirou a vesícula, tirou o apêndice, até as glândulas seminais andou a ver. Isto há dez dias, onze dias. Escrevo do hospital onde estou, é a primeira vez que uma pessegada destas me sucede.

Magro, magro. Com uma algália ainda: é uma sorte que uma algália ainda, tive mil trezentos e seis tubos a saírem de mim. Espero que na revista entendam a caligrafia tremida da crónica. Suceda o que suceder, uma coisa tenho por certa: isto alterou, de cabo a rabo, a minha vida. Ignoro em que sentido, ignoro como. Sei que alterou. Santa Maria. O que farei daqui para a frente, se existir daqui para a frente? Livros, claro, foi para isso que me mandaram para o meio de vós. Quando isto sucedeu lutava com um, tinha outro pronto, já antigo, pronto há um ano e tal, para Outubro. Para dar tempo aos tradu­tores de o traduzirem e saírem mais ou menos na mesma altura que em Portugal. Esse livro tem a melhor prosa que fiz até hoje, parece recitado por um anjo. Aquele em que trabalhava é apenas um embrião, cerca de metade do primeiro esboço, falta-lhe quase tudo. A partir de agora, se calhar, falta-lhe tudo. Voltarei a ele? Uma coisa de cada vez, não é Henrique? Vamos a ver. De uma forma ou outra a gente luta sempre. Momentos de quase esperança, momentos de desânimo. Não: momentos de muito desânimo e momentos de de­sânimo maior, como se me obrigassem a escolher entre o que não vale nada e o que vale ainda menos. Este mês deram-me um prémio literário. Estão sempre a dar-me prémios e claro que tenho prazer nisso, não sou mentiroso nem hipócrita. Toda a gente foi muito simpática.

e sem que eles sonhassem

(sonhava eu)

o cancro

ratando, ratando, injusto, teimoso, cego. Mói e mata. Mata. Mata. Mata. Mata. Levou-me tantas das pessoas que mais queria. E eu, já agora, quero-me? Sim. Não. Sim. Não - sim. Por enquanto meço o meu espanto., à medida que nas árvores da cerca uns pardais fazem ninho. A primavera mal começou e eles truca, ninho. Obrigado, Senhor, por haver futuro para alguém.